quarta-feira, 13 de março de 2013

Dia #02 - Das viagens

Empacotei a madrugada em caixotes de memórias. O grande para os livros. Um médio para roupas de Inverno. Um pequeno para pequenos nadas que não conseguia saber onde colocar, tão meus. O guarda chuva era um inadaptado naquelas volumetrias, branco, prometedor de luz em dias de chuva, olhava-me de soslaio como se tivesse uma boca refilona: leva-me daqui, leva-me daqui. Foi o último objeto a quem deitei o olhar de quem diz, não me falta já nada, ficou em cima da cama, talvez as senhoras da manutenção apreciassem o presente. Para um saco preto gigante tinha atirado tudo o que não cabia no futuro. Tentei não o olhar muito e passados estes anos não me lembro de nada que lá tivesse ficado. Os caixotes deviam descer nove andares até ao rés do chão da residência onde vivi quase um ano. Tentei o maior e não se mexia do sítio, o conhecimento afinal tem o seu peso. A madrugada tinha sido curta para guardar os últimos dez meses. Tantas pequenas coisas.

Decido-me por fim a dar por terminada a tarefa, eram seis e quarenta, tempo à justa para todos os transportes que deveria apanhar até ao voo que me transportaria, são e salva, embora um pouco mais gorda e um pouco mais independente, de regresso a casa e á minha família. Coloquei a mala, o tripé da máquina fotográfica e a própria máquina - um presente emprestado que os meus pais me tinham feito chegar uns meses antes - num pequeno carrinho, tudo atado brilhantemente com uns esticadores fluorescentes. Mochila as costas e, a imagem que tinha feito de mim mesma, de grande despojamento após a viagem, seria a de que haveria de calçar chinelos de dedo.

Às seis e quarenta e cinco apercebo-me que falhou a luz. Estou no nono andar, empacotada até às orelhas, tenho um voo para apanhar às nove e trinta da manhã, que com o fuso horário me faria aterrar em Pedras Rubras às dez horas e vinte minutos, calço uns chinelos de dedo para exibir o meu despojamento, tenho um tripé e uma máquina fotográfica, uma grande mala, um caixote grande, um caixote médio, um caixote pequeno e um esticador fluorescente, mas não tenho elevador.

Desisti dos caixotes. Continuo a achar que o conhecimento é o que leva mais peso. Deixo-os no quarto e escrevo um recado apressado e até um pouco mal educado: M. não há elevador, os caixotes ficam, por favor leva-os para baixo depois. A transportadora viria no dia seguinte. M. era a minha colega, amiga, companheira de dez meses. Ambos, transportadora e amiga, não estavam disponíveis por razões diferentes mas pela mesma condicionante: era domingo.

Fecho o quarto, levo as chaves entre dentes e com a aproximação do fosso das escadas apercebo-me que não vou ser capaz de descer com a mala, a não ser que a faça rebolar em trambolhões pouco dignos, nove andares. Às seis e cinquenta e cinco da manhã, de um domingo do final de Julho, não é muito provável que encontre alguém a passear no vão de escadas. Deixo as malas e desço, no entanto, tentando a sorte. Descer até aos infernos não deve demorar tanto. Espreito em cada andar, nem vivalma. Tento, na entrada da residência, o porteiro. Velho, ensonado, rabugento, tinha de ser a noite do Salvatore: Que não tinha idade para isso, que não podia abandonar o posto de trabalho, que não sabia o que se passava com a eletricidade: deve ser geral e parece que vai chover.

               Esqueci dos nove andares por nove segundos e olhei para os chinelos - escolhidos com tanto critério - de dedo. E por mais nove segundos vislumbrei a imagem do guarda chuva branco, oferta antecipada às senhoras da manutenção. Não havia braços para mais e o certo é que ainda não chovia, e o Salvatore era um pessimista devido à idade e à profissão. Não dormir durante a noite deixa os circuitos internos e o metabolismo baralhado. Perco mais outros nove segundos a pensar que também eu não tinha dormido. E sinto que se continuar ali mais algum segundo vou desatar a chorar.

Resigno-me em subir os nove andares. Pego na mala, engulo todos os pensamentos que me teimavam em dizer que não ia conseguir e começo a descer aos tropeções. Demorei três minutos a descer dois andares. Eram sete horas e um minuto. Faltavam sete andares, um minuto e meio cada um, dariam a módica quantia de dez minutos e meio. Deveria apanhar um elétrico, que me levaria ao comboio, que me faria chegar ao avião. Apercebo-me que será quase impossível apanhar o combóio das sete e trinta, mas enquanto penso que tenho de me despachar, sinto o corpo a avisar-me de que não dormiu, que devia ter empacotado tudo mais cedo e que até é domingo: ouço ao fundo das escadas alguém que sobe.

Desço cinco andares e cruzo-me com um finlandês, que agora não me recordo o nome mas que se assemelhava a "má verde", estava a chegar, disse-lhe que ele era um anjo que tinha aparecido na minha manhã, ele olhou-me com um olhar de quem estava prestes a espancar-me, disse que estava bêbado e tinha sono. São só sete andares, pensei, mas não disse. Fiz uma teoria improvisada que se ele me ajudasse dormiria com certeza mais feliz, e se não o fizesse ficaria a pensar na portuguesa de chinelos de dedo e nove andares para descer, empacotada até às orelhas, que ele não tinha ajudado e que ia perder o avião e não tinha um tostão no bolso para ficar ali mais um dia, quanto mais para comprar nova viagem. 

                   A história faz uma pausa aqui. Para quem possa estar a pensar que eu menti descaradamente ao dizer que não tinha um tostão no bolso. Era a mais pura verdade, tinha uma senha para o elétrico, a última, tinha o dinheiro à risca para o bilhete do comboio e o bilhete de avião com a data de dois dias à frente, pois tinha resolvido antecipar a viagem. Tinha tido um problema com o cartão de crédito e não conseguia levantar nem um tostão. Tinha gasto nas refeições e nos gastos comuns o último dinheiro vivo. A solução passaria por apanhar um taxi até ao combóio, mas não me parece que aceitassem os chinelos de dedo como pagamento, e depois talvez não me deixassem embarcar descalça.

Voltamos ao "Mar Verde", não sei se ele teve pena de mim ou de não conseguir adormecer com a visão da minha praga, subimos até ao sétimo andar onde a mala me pareceu duas vezes maior. Pegou nela sozinho e desceu até ao último degrau a praguejar em finlandês. Para fora levava-a eu. Eu disse Ciao. Grazzie mille. Ele não disse nada. Subiu.

Entrego a chave,que tinha estado ora entre dentes ora segura no sovaco, ao Salvatore. Ele diz que volte sempre. Eram sete horas e quatro minutos. Agora só tinha de andar um quarteirão até à paragem do elétrico, as rodas do carrinho iriam ajudar se conseguisse manter equilibrada a mala. Eram menos de cinquenta metros. Aos trinta metros começa a chover, maldita visão dos chinelos, aos quarenta e cinco metros o carrinho que suportava a mala, o tripé e a máquina fotográfica, partiu-se. Suspirei. Pensei. Mas não disse nada que rimasse. Não achei bem desfazer-me do carrinho, então abri a mala, dei três ao quatro empurrões, e ainda que parecesse que ia romper o tecido e ia saltar tudo o que tinha lá dentro, isso, de facto, não aconteceu.

À espera do elétrico chovia, era Julho, tinham passado dez meses desde que tinha chegado àquela cidade, e devem ter chovido umas seis vezes durante todo o inverno. Era Julho, era domingo de manhã, e por causa disso o elétrico em vez dos costumeiros três minutos e meio demorou uns catorze minutos a chegar. Chovia nos dedos dos meus pés.

O elétrico chegou com o desabar de algum resto de boa disposição matinal, era uma viagem de mais ou menos dez minutos, mas o suficiente para por em risco o comboio que devia apanhar. O motorista ao contrário de mim sorriu, não era para menos, a chuva a cair-me em cima, os chinelos nos dedos, empacotada até às orelhas, a imagem devia ser engraçada. Como viu a minha pouca habilidade para conseguir gerir a bagagem para dentro do veículo, saiu ele mesmo e colocou-a lá dentro. Riu-se e comentou, Strano piovere questa matina. Eu já não ouvi mais nada. Desisti de olhar o relógio. Respirei fundo. Respirei fundo muitas vezes. Não havia muito a fazer.

(continua)

2 comentários:

  1. Parece um pesadelo. Vou ficar à espera da continuação...

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    1. Amanhã desenlaço, obrigada pela visita e pela companhia!

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