Decido-me por fim a dar por terminada a tarefa, eram seis e quarenta, tempo à justa para todos os transportes que deveria apanhar até ao voo que me transportaria, são e salva, embora um pouco mais gorda e um pouco mais independente, de regresso a casa e á minha família. Coloquei a mala, o tripé da máquina fotográfica e a própria máquina - um presente emprestado que os meus pais me tinham feito chegar uns meses antes - num pequeno carrinho, tudo atado brilhantemente com uns esticadores fluorescentes. Mochila as costas e, a imagem que tinha feito de mim mesma, de grande despojamento após a viagem, seria a de que haveria de calçar chinelos de dedo.
Às seis e quarenta e cinco apercebo-me que falhou a luz. Estou no nono andar, empacotada até às orelhas, tenho um voo para apanhar às nove e trinta da manhã, que com o fuso horário me faria aterrar em Pedras Rubras às dez horas e vinte minutos, calço uns chinelos de dedo para exibir o meu despojamento, tenho um tripé e uma máquina fotográfica, uma grande mala, um caixote grande, um caixote médio, um caixote pequeno e um esticador fluorescente, mas não tenho elevador.
Desisti dos caixotes. Continuo a achar que o conhecimento é o que leva mais peso. Deixo-os no quarto e escrevo um recado apressado e até um pouco mal educado: M. não há elevador, os caixotes ficam, por favor leva-os para baixo depois. A transportadora viria no dia seguinte. M. era a minha colega, amiga, companheira de dez meses. Ambos, transportadora e amiga, não estavam disponíveis por razões diferentes mas pela mesma condicionante: era domingo.
Fecho o quarto, levo as chaves entre dentes e com a aproximação do fosso das escadas apercebo-me que não vou ser capaz de descer com a mala, a não ser que a faça rebolar em trambolhões pouco dignos, nove andares. Às seis e cinquenta e cinco da manhã, de um domingo do final de Julho, não é muito provável que encontre alguém a passear no vão de escadas. Deixo as malas e desço, no entanto, tentando a sorte. Descer até aos infernos não deve demorar tanto. Espreito em cada andar, nem vivalma. Tento, na entrada da residência, o porteiro. Velho, ensonado, rabugento, tinha de ser a noite do Salvatore: Que não tinha idade para isso, que não podia abandonar o posto de trabalho, que não sabia o que se passava com a eletricidade: deve ser geral e parece que vai chover.
Esqueci dos nove andares por nove segundos e olhei para os chinelos - escolhidos com tanto critério - de dedo. E por mais nove segundos vislumbrei a imagem do guarda chuva branco, oferta antecipada às senhoras da manutenção. Não havia braços para mais e o certo é que ainda não chovia, e o Salvatore era um pessimista devido à idade e à profissão. Não dormir durante a noite deixa os circuitos internos e o metabolismo baralhado. Perco mais outros nove segundos a pensar que também eu não tinha dormido. E sinto que se continuar ali mais algum segundo vou desatar a chorar.
Resigno-me em subir os nove andares. Pego na mala, engulo todos os pensamentos que me teimavam em dizer que não ia conseguir e começo a descer aos tropeções. Demorei três minutos a descer dois andares. Eram sete horas e um minuto. Faltavam sete andares, um minuto e meio cada um, dariam a módica quantia de dez minutos e meio. Deveria apanhar um elétrico, que me levaria ao comboio, que me faria chegar ao avião. Apercebo-me que será quase impossível apanhar o combóio das sete e trinta, mas enquanto penso que tenho de me despachar, sinto o corpo a avisar-me de que não dormiu, que devia ter empacotado tudo mais cedo e que até é domingo: ouço ao fundo das escadas alguém que sobe.
Desço cinco andares e cruzo-me com um finlandês, que agora não me recordo o nome mas que se assemelhava a "má verde", estava a chegar, disse-lhe que ele era um anjo que tinha aparecido na minha manhã, ele olhou-me com um olhar de quem estava prestes a espancar-me, disse que estava bêbado e tinha sono. São só sete andares, pensei, mas não disse. Fiz uma teoria improvisada que se ele me ajudasse dormiria com certeza mais feliz, e se não o fizesse ficaria a pensar na portuguesa de chinelos de dedo e nove andares para descer, empacotada até às orelhas, que ele não tinha ajudado e que ia perder o avião e não tinha um tostão no bolso para ficar ali mais um dia, quanto mais para comprar nova viagem.
A história faz uma pausa aqui. Para quem possa estar a pensar que eu menti descaradamente ao dizer que não tinha um tostão no bolso. Era a mais pura verdade, tinha uma senha para o elétrico, a última, tinha o dinheiro à risca para o bilhete do comboio e o bilhete de avião com a data de dois dias à frente, pois tinha resolvido antecipar a viagem. Tinha tido um problema com o cartão de crédito e não conseguia levantar nem um tostão. Tinha gasto nas refeições e nos gastos comuns o último dinheiro vivo. A solução passaria por apanhar um taxi até ao combóio, mas não me parece que aceitassem os chinelos de dedo como pagamento, e depois talvez não me deixassem embarcar descalça.
Voltamos ao "Mar Verde", não sei se ele teve pena de mim ou de não conseguir adormecer com a visão da minha praga, subimos até ao sétimo andar onde a mala me pareceu duas vezes maior. Pegou nela sozinho e desceu até ao último degrau a praguejar em finlandês. Para fora levava-a eu. Eu disse Ciao. Grazzie mille. Ele não disse nada. Subiu.
Entrego a chave,que tinha estado ora entre dentes ora segura no sovaco, ao Salvatore. Ele diz que volte sempre. Eram sete horas e quatro minutos. Agora só tinha de andar um quarteirão até à paragem do elétrico, as rodas do carrinho iriam ajudar se conseguisse manter equilibrada a mala. Eram menos de cinquenta metros. Aos trinta metros começa a chover, maldita visão dos chinelos, aos quarenta e cinco metros o carrinho que suportava a mala, o tripé e a máquina fotográfica, partiu-se. Suspirei. Pensei. Mas não disse nada que rimasse. Não achei bem desfazer-me do carrinho, então abri a mala, dei três ao quatro empurrões, e ainda que parecesse que ia romper o tecido e ia saltar tudo o que tinha lá dentro, isso, de facto, não aconteceu.
À espera do elétrico chovia, era Julho, tinham passado dez meses desde que tinha chegado àquela cidade, e devem ter chovido umas seis vezes durante todo o inverno. Era Julho, era domingo de manhã, e por causa disso o elétrico em vez dos costumeiros três minutos e meio demorou uns catorze minutos a chegar. Chovia nos dedos dos meus pés.
O elétrico chegou com o desabar de algum resto de boa disposição matinal, era uma viagem de mais ou menos dez minutos, mas o suficiente para por em risco o comboio que devia apanhar. O motorista ao contrário de mim sorriu, não era para menos, a chuva a cair-me em cima, os chinelos nos dedos, empacotada até às orelhas, a imagem devia ser engraçada. Como viu a minha pouca habilidade para conseguir gerir a bagagem para dentro do veículo, saiu ele mesmo e colocou-a lá dentro. Riu-se e comentou, Strano piovere questa matina. Eu já não ouvi mais nada. Desisti de olhar o relógio. Respirei fundo. Respirei fundo muitas vezes. Não havia muito a fazer.
(continua)
Parece um pesadelo. Vou ficar à espera da continuação...
ResponderEliminarAmanhã desenlaço, obrigada pela visita e pela companhia!
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