sexta-feira, 15 de março de 2024

Rio para não chorar

Estávamos em São Paulo a visitar familiares, foi última grande viagem com os pais, eu já tinha 21 anos.

Fomos de autocarro passar dois dias ao Rio de Janeiro (eu era a única da família que nunca lá tinha estado). A aventura começou logo no autocarro. Estávamos no Brasil e, claro, não tínhamos casacos. O condutor achou por bem colocar o ar-condicionado no máximo de frio. Fizemos a viagem com a sensação de que estávamos no frigorífico de um qualquer matadouro. Seis horas e pico a simplesmente congelar... Já antevendo o suplício do regresso, lembro-me de ter feito as minhas preces para nunca mais, na vida, ter uma viagem assim.

A chegada ao Rio pela rodoviária não era a mais bela das paisagens em 1998, imagino que agora também não o seja... os meninos puxando a roupa e pedindo trocos, as casas de tijolo, sem pintura ou acabamento, com as múltiplas parabólicas gigantescas a enfeitar o telhado.

Deixamos as malas no hotel de manhã cedo (Rio Othon Palace, penso eu) e fomos de táxi fazer um tour para ver as principais atrações da cidade. Começamos pelo Cristo Redentor, subi as escadas feliz, vi a vista maravilhosa, senti-me no topo do mundo... e, após uma foto aos pés do 'senhor': desmaiei.

Acordei com algumas pessoas à minha volta, o sol a resplandecer em contraluz. Desorientada.

Quando desmaio, muitas vezes acontece uma descarga intestinal a seguir, peço desculpa pelo detalhe de merda. Fui levada a braços pelo meu irmão e minha mãe até ao 'banheiro' que ficava escadaria abaixo. As forças tinham abandonado o meu corpo e o suor era tanto que eu só pensava: "em que parte do caminho é que me tinham dado banho".

Depois de recuperar parte da alma, secado como pude o suor que me escorria pelo corpo e ainda a braços: lá chegamos ao táxi, dando o meu pai a ordem de imediato regresso ao hotel. O taxista, aborrecido por ter perdido a corrida, insistia em dar uma volta maior. Acho que ainda conseguiu passar no Maracanã, mas não estou certa se o tínhamos visto antes do Cristo. Eu cambaleava, com a cabeça abandonada no assento e uma mão a tentar acenar que não conseguia ficar ali muito tempo.

Fomos todos para o hotel, depois do taxista ter cobrado uma taxa, inventada na hora, para percursos turísticos.

Ao almoço, já me sentia recuperada, e eu e o meu irmão resolvemos experimentar a praia de Copacabana. Um bocadinho de sol e já estávamos a pensar que estava demasiado calor e tínhamos de mergulhar. Curiosamente não estava ninguém na água... saímos do mar com a sensação de que tínhamos mergulhado em óleo Johnson, o corpo reluzia e tinha gotas espessas de uma substância que em nada parecia água do mar... incrédulos, secamos o corpo e rumamos ao hotel para mergulhar na água do chuveiro.

O resto do dia foi pacato: passeio a pé e jantar num restaurante oriental japonês-chinês-coreano. Foi o meu primeiro sushi da vida.

Copacabana é lindo à noite e eu fiquei feliz por chegar ao hotel com vista para a favela sem sermos assaltados.

No dia seguinte, na última oportunidade que eu tinha para conhecer a cidade maravilhosa, chovia!

Chovia! Eu vou ao Rio de Janeiro por 2 dias e no primeiro desmaio e tomo banho de esgoto... e no segundo chove? Não podia ser. Não convencidos que a chuva fosse de muita monta, fomos em direção ao Pão de Açúcar. Tínhamos os bilhetes, mas ninguém tinha vontade de passear nos morros debaixo de chuva.

Naquela época, eu acreditava na força do meu pensamento. Olhei para os cabos do teleférico e para a chuva e pensei: "a chuva não é mais do que eu no universo, e eu sou tanto quanto a chuva, por isso, se eu estou aqui hoje, vai parar de chover." Disse à minha mãe várias vezes que não se preocupasse, que ia parar de chover, e parou. Parou de chover no momento em que o nosso teleférico chegou. Confesso que hoje, todo esse pensamento místico-crente é-me totalmente alheio, mas naquele dia pareceu-me bastante eficaz. O Pão de Açúcar é um lugar bastante especial, que bom que o visitamos. A proximidade e a abundância de macacos deixavam-me muito desconfortável, mas a vista e o verde eram reconfortantes.

Não me lembro de muito mais dessa viagem, a não ser do regresso. Como já comentei, naquela época, eu era muito crente naquilo que eu desejava. Se bem se lembram, no início deste relato, eu tinha desejado nunca mais viajar com tanto frio. E não viajei. Regressamos a São Paulo num 'ônibus' com o ar-condicionado avariado. A porta foi aberta as seis horas, e pico, que durou a viagem que se assemelhou a uma descida ao calor dos infernos.

domingo, 31 de março de 2013

Dia #16 - Domingo de Páscoa


Com o avançar das horas, o aeroporto ia ganhando passos, gente, e pressa. O meu dia, pelas onze horas e quarenta minutos, seguia com lentidão para um fim, que eu, por cautela e cansaço, preferia não imaginar. Entrei no restaurante exibindo uma senha azulada, esperando não ter de voltar a explicar que só estaria em casa pelas sete. O funcionário sorriu, que guardasse a senha, entregaria no final. Piove? Resolveu perguntar enquanto estacionava os olhos nos meus chinelos. Volevo tornare leggera. Disse. Mas como fiquei também a olhar para os pés, não reparei que o funcionário já se tinha afastado, estando já ao pé da mesa que eu deveria ocupar. Segui-o.

Pousei a mochila. Pousei o tripé. Pousei a máquina fotográfica - na cadeira ao meu lado. Desabei na cadeira e no domingo, mais uma vez. Demoraram quinze minutos a servir-me o primo piatto, patattini con funghi. Sorri. Dez meses antes, no domingo em que o carro se afastou, esventrando a cidade. No domingo em que percebi que o meu Eu, era afinal um eu por sua conta. Nesse domingo, num restaurante do centro da cidade, quase a fechar, tínhamo-nos servido de Padelatta di Patattini e Funghi, em família.

Enquanto desfaço as batatinhas vagarosamente na boca, o lugar à minha frente é ocupado. Uma senhora muito velha, muito magra e de chinelos nos dedos - desculpando-se com o olhar - senta-se. Sorri - mas só para dentro - ao ver os seus pés muito enrugados tão desnudos. Pensei que iria ficar incomodada de a ver comer à minha frente, disfarço o incómodo com três golos de água. Ela coloca muito devagar a carteira em cima da mesa. Resolvo esperar pelo secondo piatto. O funcionário parece distraído. Olho o copo. Não tenho mais água.

A senhora muito velha, abre com os dedos finos, magros e decididos a ignorar uma certa tremura, a carteira. Finjo distrair-me com a minha mochila.

Dez anos antes, uns dedos finos, magros, e decididos a ignorar uma certa tremura, tateavam o interior de uma carteira. O terço balouçava finalmente das suas mãos para as minhas. Naquele dia pediu para que ficasse com ela. Ajoelhadas, à luz nascente, que desenhava no quarto todas as coisas com enorme delicadeza, íamos desfiando o rosário, num silêncio vagaroso.

Os sinos dobravam alegria. Pelas ruas ouviam-se os sinais do compasso. Levantou-se. Levantei-me. Entreguei-lhe o terço, segurando-lhe as mãos, para que me visse. Descemos juntas as escadas, com o sol ziguezagueando os passos. Na sala, esperando-nos, a Amália, enchendo o espaço, e o avô no seu cadeirão.

A senhora muito velha, guardou o terço. Sem tremura. O funcionário perguntou-me se desejaria sobremesa. Que não, não chegaria para os quatro.

Pensei que não sabia se a Amália tinha morrido na televisão do avô.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Dia #15 - silêncio

o silêncio
veste

cada janela
cada lume

quando
em fúria o encontro

palavras
corrompidas
sofrem

quinta-feira, 28 de março de 2013

Dia #14 - Volare nella tua vita

Cheguei, depois de umas quantas desencontradas voltas, finalmente, ao referido balcão onde me haveriam de dar o inesperado reembolso da viagem. Estavam nove pessoas na fila, e pensei se a todas elas teria avariado o elevador naquele domingo de manhã. A fila não se demorava muito, e em poucos minutos, mas um pouco mais que nove, chegou a minha vez. Un attimino per favore. A mulher levantou-se da cadeira, exibindo, uma altura invulgar e uma atitude de grade indiferença para o facto de eu não ter comido, naquela manhã, mais do que uma bolacha e meia. Desapareceu atrás de uma porta camuflada por um grande poster que gritava: Alitalia Volare, nella tua vita.

Pousei a mochila no chão, presa entre as pernas e o balcão, e sem cerimónias pousei a cabeça no mesmo. O tempo, era, naquele preciso instante, de um peso estonteante. A mulher voltou, levanto os olhos e com os mesmos chamei-lhe cabra, tinha ido retocar o baton, e mesmo admitindo a possibilidade de o ter feito entre outras coisas, a atitude desconcertava-me.



Sentou-se em silêncio, levantou então a cabeça, já com um sorriso pintado e perguntando. Buon Giorno. Estendi-lhe o bilhete e expliquei, caso lhe pudesse interessar, que afinal só ia chegar a casa pelas dezanove. Colocou o que deveriam ser os meus dados num dos dois computadores que estavam atrás do balcão. Não era de muitas palavras, mas ia sorrindo, enquanto abria uma gaveta e começou a contar algumas libras. Perguntou-me se trezentas mil estaria bem. Ora deixe-me pensar, eu não tenho dinheiro há um par de dias, tenho na mochila, e no bolso, umas seis bolachas, o restaurante - pelo qual eu tinha passado nas voltas à procura do balcão - só abria pelas onze e trinta. E pensei tudo isso e disse, sim, está bem. Que apesar de tudo dezanove horas ainda seriam do dia de
hoje.





Hoje, pareceu-me então um conceito muito desajustado e até um pouco infeliz. Mastiguei-o:

ho-je.


Ela contava as notas para que eu visse. Senti a barriga a sorrir e o tempo, pareceu-me, afinal, algo que se pudesse cavalgar. Sentei-me então uma hora e trinta e cinco minutos, ao balcão de um dos bares do aeroporto, tomei três capuchinos e dois cornetti. Guardei o troco.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Dia #13 - Dia Mundial do Teatro

O homem de barba mal aparada tomava o café, ruidosa e lentamente. No chão, a seus pés, o cão (nessa altura ainda nos cafés se viam muitos cães com os donos) lambia um papelinho amarelo, saboreando, talvez, a informação, ou a lentidão com que o tempo se arrastava. O homem lia um jornal que eu, na minha ociosa pausa após o almoço, cobiçaria por largos minutos. Chovia. Peguei num pequeno bloco preto, e tentei desenhar o cão com o seu papel amarelo. Depois de me ter apanhado a olhar, insistentemente, na sua direção, umas quantas vezes. O homem, ainda antes de dar ordem ao cão para que saíssem, estendeu-me o jornal. Quer? Olhei em volta. Sim, queria. Ao aproximar-se viu o desenho do seu cão. Está giro. Sorri, mas não disse nada, o desenho ficou por acabar, e nem se parecia muito um cão, também não consegui desenhar o papel amarelo que ele lambia. O homem coxeava um pouco, e falava para o cão enquanto saíam. Estamos velhos Ezequiel. Estamos velhos. Na altura devia ter ficado a pensar quem é que no seu juízo dá Ezequiel como nome a um cão, mas não fiquei. Pareceu-me bastante natural que escolhesse aquele nome, como seria natural que escolhesse qualquer outro. Era seu.

Folheei o jornal, sem ler praticamente nada. Fiquei com uma grande vontade de apanhar o papel amarelo do chão e saber o que tinha escrito, mas não apanhei. As notícias eram todas da semana anterior. Na última página publicitavam um curso de teatro, intensivo. Começava dali a uma semana, no dia seguinte.  Peguei de novo no pequeno bloco e tirei as indicações, sem saber se haveria tempo. Sem saber, o homem velho, de barba mal aparada, tinha respondido a mais ou menos meio milhão de perguntas que há dias eu teimava em não conseguir responder-me.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Dia #12 - Fuga para o deserto

O rapaz espetou o dedo indicador em direção ao nariz aquilino da mãe, e em alto, e num bom som que toda a vizinhança poderia, um dia mais tarde testemunhar, atirou com um: vou fugir para o deserto, vou ficar lá sozinho, calou-se - a mãe preparava-se para dar meia volta, pensando que a ameaça estava já dita. Enganou-se. E fico lá para sempre, rematou o rapaz, e já batia com os dois pés, furiosa e provocatoriamente no chão, alternadamente. A mãe decidiu não deixar aquele ataque de síndrome do menino Jesus em branco, estendeu-lhe também ela o dedo indicador, mas desta vez um pouco mais abaixo do que ele tinha estendido, e disse: Se vais tu vamos todos, aqui ninguém faz férias sozinho. O caldo estava, à distância daqueles dois indicadores, todo entornado pelo chão. A irmã resolveu entrar na festa, e do quarto, onde só tinha ouvido metade da conversa, apeteceu-lhe fazer esta ilustrada contribuição: Férias? Então há dinheiro para férias, e eu que ando a pedir uns patins há meio ano? Ninguém diz nada agora? A mãe não disse. Ficou a pensar que talvez lhe apetecesse mesmo ir para o deserto,

como se propagaria o som no deserto? Que espécie de miragens teria? Ficou numa tão grande contemplação que o rapaz, que olhava ainda com uns olhos furiosos, ficou desconcertado. Por que raio ela parecia tão calma. Eu vou mesmo! Disse ele, na derradeira tentativa de abalar a imagem que a mãe parecia estar a ver naquele momento. A mãe sentou-se no chão da cozinha, calada, imóvel, feliz. O rapaz resolveu ir chamar a irmã, os dois sentaram-se no chão, comentando. Talvez tivesse enlouquecido de vez. Mãe! Mãe? Silêncio. A mãe saltitava nas dunas, mergulhava na areia, e rodopiava de mãos dadas com os seus dois filhos.



Nota da Editora: Percebemos que é extremamente complicado manter a regularidade da escrita nos fins de semana, procuraremos, na medida do possível, nunca falhar nos dias úteis, até aos 30... nos outros, tentaremos sempre, mas para já sem promessas, nem pessoais. (falar na primeira pessoa do plural dá uma sustentação que esperamos seja verosímil aos estimados leitores, se é que os há)

sexta-feira, 22 de março de 2013

Dia #11 - O Coração


Ás dezanove e trinta de um domingo - o domingo parece acabar e já a semana parece entrar-nos pelas paredes em (contra) tempo. Percebi que o domingo em família, após dez meses de espera, não seria aquele. Ouvi a avó enquanto me fechava a mão, e ao seu segredo, de novo me segredando: para que me voltes.

Aceitei a alternativa, o certo é que eu não sabia se podia não aceitar. O painel dos voos piscava a partida do avião que nunca apanhei, uma luz quadrada, cinza, acendendo e apagando, e a senhora magra, de galochas e guarda-chuva aberto, sentada no meu lugar, por cima da asa. Que fosse a um segundo balcão, continuou o senhor - parecia apressado - lá me reembolsariam do voo que perdi. Reembolso? Mas não fui eu que cheguei tarde? (Pensei, mas não disse.) E a bagagem? Em Madrid (digo)? Que não me preocupasse mais, seguiria para o Porto. Olhei para a minha imensa mala, e tive a impressão que os nossos caminhos não seriam convergentes. Um outro pensamento consumiu-me o estômago, e sem que o pudesse entender, já o ouvia: Tenho fome. O homem ficou um pouco embaraçado, eu também ficaria, mas estava já demasiado ocupada em tentar perceber quantas bolachas havia na mochila. Ele levantou um pouco a voz. Claro que me ofereceriam também o almoço. Almoço? A minha fome fez contas de cabeça tentando perceber a que horas poderia eu almoçar. Eram nove e vinte e cinco da manhã. Enquanto cruzava, sentindo-me inesperadamente leve, o aeroporto procurando o balcão onde supostamente me reembolsariam, piscava sobre mim a luz do voo que estava a partir, não me levando para o meu destino, onde deveria chegar pelas dez horas e vinte minutos da manhã.

Passariam precisamente cinco anos e cinco dias, pelas dez e vinte da manhã, a médica apontava para o ecrã, vê? Este quadradinho a piscar? Eu via o aeroporto inteiro à volta daquele quadradinho. É o coração. Coração? E batia.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Dia #10 - Eu

Dez anos antes, o conceito de solidão era diferente, a multidão citadina e apressada, desse lugar geralmente esvaziado de memórias, comprimia-me, para o balcão do check-in.


A menina continuava sorridente, mas não pude deixar de reparar que os olhos dela saltitavam, desde mim até à imensidão de gente que se acumulava atrás das minhas costas, que deveria dirigir-me a um outro balcão, tratariam dos pormenores. Pormenores? Tentaremos colocá-la num outro voo. Outro? Não sabemos se conseguiremos algum voo direto. Não? Coloco as mãos nos bolsos vazios, já plantada com as malas - e com a cabeça florescendo preocupações, no balcão onde tratariam dos pormenores.


Eu precisava de uma explicação, estenderam-me umas etiquetas que deveria colocar na bagagem. Pediram-me a bagagem, passei a custo a mala. O resto viajaria comigo, a máquina fotográfica, o tripé da mesma, a minha mochila (até hoje não me recordo o que levava na mochila a não ser as bolachas) e os meus chinelos nos dedos dos pés. Roupa também, a minha. O senhor falava depressa e, sem hesitar um segundo, perguntou-me se aceitaria viajar para Madrid, pelas treze e trinta. Faria uma escala de quatro horas e seguiria para o Porto, com chegada prevista para às dezanove e trinta locais.





O dia era, afinal, o mais próximo que eu iria conhecer do conceito de infinito. A avó segredava-me: para que me voltes. E era domingo.


Dez meses antes, também num domingo, cinco dias depois da Amália me morrer por escrito, no painél de informações, em letras vermelhas, o carro afastar-se-ia da cidade. Num grito imenso. A cidade crescia-me pelos dedos. Numa mão, o mapa da cidade, ainda desconhecida. Na outra mão, o mapa das linhas do metro. Nos olhos, o carro, afastando-se, dando-me a consciência de um Eu até então desconhecido.

Entranho-me nas linhas do metropolitano, e acampo a minha angústia no único local em que o meu gigantesco silêncio não seria questionado. Sentei-me na catedral, imóvel, em silêncio, encarando aquele Eu até agora desconhecido, até que a noite me vencesse, e as portas fechassem.

Ci sono le sette, la signorina deve uscire. Si, si! Fugi aos olhos piedosos do sacristão, e aos passos, subitamente ruidosos, dos turistas. Cruzei a porta.



Eu.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Dia #09 - da solidão

Passar-se-iam dez anos até sentir aquela mesma solidão, a do carro, afastando-se, e da cidade, a milhares de quilómetros dos meus, se tornar num ameaçador grito, repetindo, uma, duas, dez, centenas de vezes, agora estás só. Agora

e aqui. Estás só.

O telefone nesse dia tinha tomado a decisão, firmemente contra a minha vontade, de tocar repetidamente: urgências e futilidades, esvaziando-me de qualquer paisagem interior que quisesse contemplar. O almoço, de pé ao balcão, uma sandes de salmão com requeijão. Faço nota à menina que a serviu, que é uma sandes com rima. Ela acedeu, que sim, que rimava, mas que não se interessava por palavras, nem por rimas, nem por versos. Um dia vou para Paris. Sim? Perguntei, mas só com os olhos. A sandes enchia-me o chão e o céu da boca. Que ia ser porteira de um lindo arranha céus. Bebi dois golos de sumo de laranja, para desentalar a sandes e o que me parecia ser um sonho sem asas. Eu não perguntei, mas ela continuava. Que seria provisório. O meu telefone tocou. Decido não interromper o monólogo e a sandes. Fiz-lhe um gesto, um sorriso e pedi-lhe por favor, que continuasse. Nas folgas cantaria à porta do metro, e seria convidada para um grande musical parisiense. Alargou o decote da blusa. Eu olhei o relógio. Estava atrasada, pelo menos dez minutos. Se pudesse, gostaria de tomar um café. Engoli o café, o telefone voltou a tocar.

Não atende? Sorri, denunciando o cansaço, mais tarde retribuiria a chamada, sabe como é? Ela, no que me pareceu um ato de boa fé e de ingenuidade, disse que não, que não sabia. Viajo muito, disse-lhe ainda, talvez nos encontremos, na próxima, em Paris. Ela sorriu. Eu não. O telefone tocava.

Saí do bar. Chovia. Como não tinha guarda-chuva, e porque não me apetecia voltar à futura porteira parisiense, abriguei-me na entrada de um prédio. Um velho pediu-me licença, colocou-se ao meu lado. Esperamos. Perguntou-me se estava bem. Olhei-o demoradamente. Conhecer-me-ia? Olhei-o de novo. Que sim, que estava, apenas estava atrasada. Atrasada para quê? Não cheguei a responder. O telefone tocou de novo. Segurei na mala do portátil com a mesma mão com que segurava a carteira, e para a mesma mão passei o casaco que não tinha vestido.

Procurei o telefone. Atendi. Silêncio. Tinha tirado os óculos, porque chovia, e porque estavam molhados, e não conseguia ler quem me ligava. O silêncio rompeu-se, do outro lado as palavras, tentando ser serenas, transformaram-se, para mim, num ameaçador grito, o mesmo grito que a cidade me fizera dez anos antes, repetindo, uma, duas, dez, centenas de vezes:

agora estás só, agora e aqui, estás

só.


Olho o velho, que fitava os sapatos. O senhor conhece-me?

terça-feira, 19 de março de 2013

Dia #08 - Do tempo

A sombra da grande árvore,
resistiu:
um dia

Nem a noite
a despejou

no chão
e no tempo
fez a sua moradia.

segunda-feira, 18 de março de 2013

Dia #07- Uma mulher muito magra

Estranhei que fosse tão jovem, que me franzisse o sobrolho e que com uma mão estendida e outra brandindo em direção ao painél, uma espada imaginária, me repetisse várias vezes: il biglieto signorina, il biglieto. Passei-lhe finalmente o bilhete. Que não era para aquele dia, marcava vinte e cinco. Eu sentia-me cansada. Levava num ombro a avó e os seus olhos que não viam, no outro a Amália que me morria de novo a cada minuto que passava, embaraçava-me a máquina fotográfica, a mala, o tripé a tiracolo, e ainda a mochila com uma bolacha e mais meia esperando a minha fome.

Senti uma urgência enorme de descalçar, naquele preciso momento, cada um dos dois chinelos que teimei em calçar naquela manhã. Expliquei que o bilhete tinha sido alterado, mas que não tinha nenhuma via com a data alterada, pensei que o bilhete tinha vindo por carta, mas não o disse. Verificou a lista, e sim, o meu nome constava. Iluminei, finalmente e vitoriosamente, o meu rosto. Mas tinha sido retirado. E de uma maneira que considerei obscena, explicou-me o conceito, para mim até então desconhecido, de over-booking. Todos os lugares já estavam preenchidos, mesmo que conseguisse passar a tempo o portão de embarque, o avião já me tinha dispensado. No meu hipotético lugar imaginei uma mulher muito magra, de galochas e guarda chuva aberto.

(continua)






domingo, 17 de março de 2013

Dia #06 - Pó de Talco

A porta da casa estava sempre destrancada, entravamos chamando. O contra-luz emoldurava a porta da  cozinha onde, não raras vezes, nos aparecia em silhueta hitchcockiana, exibindo o facalhão com que desventrava os animais para o almoço domingueiro. Nesse, o domingo do abraço, chamei e nenhuma silhueta se desenhou na porta. Cheirava a pó de talco, na sala, no corredor, pela cozinha, e nas escadas que subi, de acesso ao quarto. Tinha se deixado estar deitada, era manhã, era domingo, e não viria ninguém para almoçar. Bati. Com um cesto de flores que levava na mão, foi impossível não lembrar o capuchinho vermelho. Ela já se levantava, passava um pouco de talco no colo e apertava os últimos botões da camisa, tão branca, tão impecavelmente engomada.

Estendi-lhe as flores. Cheirou-as. Eu sorri. Para quê? Para te lembrares, e continuei, estão num vaso, sempre que as regares lembrar-te-ás que também eu cresço - como as flores. Que tinha muitas no jardim. Nenhuma que seja minha.

Descemos. De manhã fervia-se a água para o pó da cevada. Deixei-me a olhá-la, enquanto as mãos conheciam todos os lugares, ia passeando pela cozinha. A cevada misturou-se com o pó de talco, e por todo lado:

Ela. Serviu-me. Serviu-se. Bebemos a cevada com os sorrisos. Terminamos. Deixou-me lavar as chávenas, afastou-se e parecia procurar algo numa pequena caixa. Segurou-me com as mãos, as mesmas mãos que tantas vezes me tinham embalado. Como um segredo, colocou-me um pequeno embrulho nas minhas, tão pequeno que me fechou os dedos, todos, para que não o visse ou perdesse. Para que me voltes. Olhei-a nos olhos que não me viam, beijei-lhe as mãos, todas. Ela não disse mais nada. Lambeu-me os olhos com as suas mãos. E ficou muito parada, como se me visse apenas naquela vez, com os braços muito estendidos, já me esperando.

A rapariga do check-in impacientava-se, de braços estendidos e com a voz de um galináceo, fez-me um ralhete: La signora dovrebbe affrettarsi. As suas mãos perfumadas cheiravam-me a talco, flores e cevada.

(continua)

Dia #05 - Do silêncio


O coração encheu-se de luz.
Nenhuma palavra foi dita
nem sombra nem vento
no avesso do corpo
eu,
e o silêncio.



(E ao quinto dia falhei, às vezes o tempo atraiçoa-nos.
Hoje tentarei restabelecer o ritmo com dois textos.
Um dia depois, e cheia de mestres e poesia no corpo, seguiram as palavras)

sábado, 16 de março de 2013

Dia #04 - Malpensa

A estação de Cadorna amanhecia lentamente, o domingo esticava-se pelos olhos e pelos modos de cada um dos trabalhadores. O balcão de atendimento era o meu oásis, atravessei o deserto sem olhar para nem mais um minuto. A camisa branca, demasiadamente branca, do rapaz atrás do balcão distraiu-me. Tirei o dinheiro do bolso, algumas notas, algumas moedas. Fiquei com dúvidas se estariam todas. Para Malpensa, já partiu? Que não tinha partido, e olhou para trás, num gesto que me pareceu demasiadamente lento e inexpressivo. O colega perguntava por um qualquer documento, devo ter suspirado. Dou-me conta que devo ter suspirado demasiadamente alto. O rapaz encara-me de novo com um olhar reprovador de suspiros a um domingo de manhã, pelas sete horas e vinte e nove minutos, olha a quantidade de moedas e notas que haveria de contar e começa a fazê-lo. Olho o comboio. Ele entende: Parte adesso, ma ormai non ci sono posti, il prossimo uscirá in trenta minuti.





Trinta





minutos





- Alle otto! - Eu tinha entendido, desde que Amália me morreu por escrito, que percebi o quanto aquela língua também era minha. Sim, ainda queria o bilhete. Chegaria com menos de quarenta minutos da hora do voo, mas a tempo da hora de embarque. Cruzo a sala de espera, arrastando a mala, o tripé da máquina fotográfica, o saco da mesma, a minha mochila castanha, e mais ou menos uma centena de 'ses' atropelando-me os passos. Se tivesse preparado os caixotes mais cedo. Se o carrinho das bagagens não se tivesse partido. Se não fosse domingo. Se.

Olho os chinelos nos dedos ainda molhados. Sento-me. Tiro duas bolachas da mochila. Como meia. Desabo. O senhor da cadeira em frente parece morto pelo domingo, não tem bagagem nem ar de quem vai viajar. Olho por cima do ombro a ver se é alguém atrás de mim que ele observa. Só há uma planta. Espero.

O comboio chegou um pouco antes da hora de partida, decido colocar as malas quase em frente à porta,  e planto a minha determinação ali mesmo. Não me sentei. Não espreitei pela janela. Fiquei. Ali seria a primeira a sair.

Chegada, ao aeroporto, com a sensação pueril de quem chega ao final da viajem, voei com os olhos, reli mil vezes os avisos, o número do voo, o portão de embarque. A luz cintilante e opressora, destino Oporto, embarque imediato, embarque imediato, embarque... uma massa disforme de gente, bagagens, cheiros e entraves separava-me do balcão do check in. Perguntei, uma vez. Duas vezes. Perguntei, mostrando o bilhete, qual seria o indicado. Qualquer um! O balcão indicado era:

qualquer um! Descubro que o check in à milanesa é indiferenciado. São oito horas e cinquenta e seis minutos, duas horas e um minuto depois de ter fechado a porta do quarto onde vivi por dez meses (dez meses depois da Amália me ter morrido pelos olhos),  num para sempre, num regresso a uma casa da qual não teria a certeza se poderia chamar novamente minha, descendo nove andares, a chuva insistentemente lembrando-me a inaptidão dos meus chinelos, o homem do elétrico carregando-me as malas, o rapaz da camisa demasiadamente branca apontando o comboio. E já não era uma massa de gente inoportuna entre mim e o check-in, era um borrão desfocado de cores. A senhora à minha frente viu o mesmo borrão que eu via, mas nos meus olhos. Pediu para ver também o meu bilhete. E como se vestisse de polícia sinaleiro abriu (não sei se moisés conseguiria fazê-lo tão depressa) um corredor de mim, até à senhora de dentes muito brancos e sorridentes do balcão. Que perde il volo, que perde il volo, gritava. Estranhei que não se ouvisse nenhuma marcha.

A menina atrás do balcão sorria e agora estendia-me, juntamente com os dentes brancos, os seus braços. Estendi-lhe o meu alívio, ela pediu-me o bilhete. Eram nove horas e três minutos, eu só conseguia pensar na bolacha e meia que tinha no bolso.


(continua)













quinta-feira, 14 de março de 2013

Dia #03 - Das Viagens II

Dez meses antes um carro afastar-se-ia pela cidade, alimentando-a. Agigantando-lhe os contornos. Na minha pequenez observante a cidade ruía, na distância: o país, as estradas, o caminho - agora infinito - de mim até aos meus. Cinco dias antes, tínhamos rasgado as artérias da cidade com a minha ânsia e a supervisão dos meus. O painel de boas vindas alternava frases, apunhalando-nos. Naquele dia, dia seis, cinco dias antes do carro se afastar de mim - num movimento que parecia explicar-me o conceito de infinito - num painel abafado por semáforos, árvores citadinas, pombos relutantes e uma chuva miudinha e persistente,

Amália morria-me. Diante dos meus olhos - de costas voltadas para o meu país, a abraçar um mundo de línguas novas. Amália morria num painel de boas vindas, em letras vermelhas e inacreditavelmente insensíveis à minha estranha dor. Não era só a sua morte que, diante dos meus olhos escrita, me abalava, era esse sentimento de distância, de sentir que no meu país ela não teria aquela morte de letras vermelhas e inacreditavelmente insensíveis. No meu país ela morreria na TV, nos olhos cúmplices, nas conversas de pastelaria. No meu país Amália não morreria num retângulo emoldurado de árvores citadinas, pombos relutantes, semáforos e chuva persistente. Amália morreria em todo o lado.

O elétrico parou na Estação de Cadorna, olhei de novo os chinelos de dedo, ainda chovia. Faltavam dois minutos para o comboio partir com destino ao Aeroporto. Corri como pude. Senti que a Amália me pesava.

(continua)

quarta-feira, 13 de março de 2013

Dia #02 - Das viagens

Empacotei a madrugada em caixotes de memórias. O grande para os livros. Um médio para roupas de Inverno. Um pequeno para pequenos nadas que não conseguia saber onde colocar, tão meus. O guarda chuva era um inadaptado naquelas volumetrias, branco, prometedor de luz em dias de chuva, olhava-me de soslaio como se tivesse uma boca refilona: leva-me daqui, leva-me daqui. Foi o último objeto a quem deitei o olhar de quem diz, não me falta já nada, ficou em cima da cama, talvez as senhoras da manutenção apreciassem o presente. Para um saco preto gigante tinha atirado tudo o que não cabia no futuro. Tentei não o olhar muito e passados estes anos não me lembro de nada que lá tivesse ficado. Os caixotes deviam descer nove andares até ao rés do chão da residência onde vivi quase um ano. Tentei o maior e não se mexia do sítio, o conhecimento afinal tem o seu peso. A madrugada tinha sido curta para guardar os últimos dez meses. Tantas pequenas coisas.

Decido-me por fim a dar por terminada a tarefa, eram seis e quarenta, tempo à justa para todos os transportes que deveria apanhar até ao voo que me transportaria, são e salva, embora um pouco mais gorda e um pouco mais independente, de regresso a casa e á minha família. Coloquei a mala, o tripé da máquina fotográfica e a própria máquina - um presente emprestado que os meus pais me tinham feito chegar uns meses antes - num pequeno carrinho, tudo atado brilhantemente com uns esticadores fluorescentes. Mochila as costas e, a imagem que tinha feito de mim mesma, de grande despojamento após a viagem, seria a de que haveria de calçar chinelos de dedo.

Às seis e quarenta e cinco apercebo-me que falhou a luz. Estou no nono andar, empacotada até às orelhas, tenho um voo para apanhar às nove e trinta da manhã, que com o fuso horário me faria aterrar em Pedras Rubras às dez horas e vinte minutos, calço uns chinelos de dedo para exibir o meu despojamento, tenho um tripé e uma máquina fotográfica, uma grande mala, um caixote grande, um caixote médio, um caixote pequeno e um esticador fluorescente, mas não tenho elevador.

Desisti dos caixotes. Continuo a achar que o conhecimento é o que leva mais peso. Deixo-os no quarto e escrevo um recado apressado e até um pouco mal educado: M. não há elevador, os caixotes ficam, por favor leva-os para baixo depois. A transportadora viria no dia seguinte. M. era a minha colega, amiga, companheira de dez meses. Ambos, transportadora e amiga, não estavam disponíveis por razões diferentes mas pela mesma condicionante: era domingo.

Fecho o quarto, levo as chaves entre dentes e com a aproximação do fosso das escadas apercebo-me que não vou ser capaz de descer com a mala, a não ser que a faça rebolar em trambolhões pouco dignos, nove andares. Às seis e cinquenta e cinco da manhã, de um domingo do final de Julho, não é muito provável que encontre alguém a passear no vão de escadas. Deixo as malas e desço, no entanto, tentando a sorte. Descer até aos infernos não deve demorar tanto. Espreito em cada andar, nem vivalma. Tento, na entrada da residência, o porteiro. Velho, ensonado, rabugento, tinha de ser a noite do Salvatore: Que não tinha idade para isso, que não podia abandonar o posto de trabalho, que não sabia o que se passava com a eletricidade: deve ser geral e parece que vai chover.

               Esqueci dos nove andares por nove segundos e olhei para os chinelos - escolhidos com tanto critério - de dedo. E por mais nove segundos vislumbrei a imagem do guarda chuva branco, oferta antecipada às senhoras da manutenção. Não havia braços para mais e o certo é que ainda não chovia, e o Salvatore era um pessimista devido à idade e à profissão. Não dormir durante a noite deixa os circuitos internos e o metabolismo baralhado. Perco mais outros nove segundos a pensar que também eu não tinha dormido. E sinto que se continuar ali mais algum segundo vou desatar a chorar.

Resigno-me em subir os nove andares. Pego na mala, engulo todos os pensamentos que me teimavam em dizer que não ia conseguir e começo a descer aos tropeções. Demorei três minutos a descer dois andares. Eram sete horas e um minuto. Faltavam sete andares, um minuto e meio cada um, dariam a módica quantia de dez minutos e meio. Deveria apanhar um elétrico, que me levaria ao comboio, que me faria chegar ao avião. Apercebo-me que será quase impossível apanhar o combóio das sete e trinta, mas enquanto penso que tenho de me despachar, sinto o corpo a avisar-me de que não dormiu, que devia ter empacotado tudo mais cedo e que até é domingo: ouço ao fundo das escadas alguém que sobe.

Desço cinco andares e cruzo-me com um finlandês, que agora não me recordo o nome mas que se assemelhava a "má verde", estava a chegar, disse-lhe que ele era um anjo que tinha aparecido na minha manhã, ele olhou-me com um olhar de quem estava prestes a espancar-me, disse que estava bêbado e tinha sono. São só sete andares, pensei, mas não disse. Fiz uma teoria improvisada que se ele me ajudasse dormiria com certeza mais feliz, e se não o fizesse ficaria a pensar na portuguesa de chinelos de dedo e nove andares para descer, empacotada até às orelhas, que ele não tinha ajudado e que ia perder o avião e não tinha um tostão no bolso para ficar ali mais um dia, quanto mais para comprar nova viagem. 

                   A história faz uma pausa aqui. Para quem possa estar a pensar que eu menti descaradamente ao dizer que não tinha um tostão no bolso. Era a mais pura verdade, tinha uma senha para o elétrico, a última, tinha o dinheiro à risca para o bilhete do comboio e o bilhete de avião com a data de dois dias à frente, pois tinha resolvido antecipar a viagem. Tinha tido um problema com o cartão de crédito e não conseguia levantar nem um tostão. Tinha gasto nas refeições e nos gastos comuns o último dinheiro vivo. A solução passaria por apanhar um taxi até ao combóio, mas não me parece que aceitassem os chinelos de dedo como pagamento, e depois talvez não me deixassem embarcar descalça.

Voltamos ao "Mar Verde", não sei se ele teve pena de mim ou de não conseguir adormecer com a visão da minha praga, subimos até ao sétimo andar onde a mala me pareceu duas vezes maior. Pegou nela sozinho e desceu até ao último degrau a praguejar em finlandês. Para fora levava-a eu. Eu disse Ciao. Grazzie mille. Ele não disse nada. Subiu.

Entrego a chave,que tinha estado ora entre dentes ora segura no sovaco, ao Salvatore. Ele diz que volte sempre. Eram sete horas e quatro minutos. Agora só tinha de andar um quarteirão até à paragem do elétrico, as rodas do carrinho iriam ajudar se conseguisse manter equilibrada a mala. Eram menos de cinquenta metros. Aos trinta metros começa a chover, maldita visão dos chinelos, aos quarenta e cinco metros o carrinho que suportava a mala, o tripé e a máquina fotográfica, partiu-se. Suspirei. Pensei. Mas não disse nada que rimasse. Não achei bem desfazer-me do carrinho, então abri a mala, dei três ao quatro empurrões, e ainda que parecesse que ia romper o tecido e ia saltar tudo o que tinha lá dentro, isso, de facto, não aconteceu.

À espera do elétrico chovia, era Julho, tinham passado dez meses desde que tinha chegado àquela cidade, e devem ter chovido umas seis vezes durante todo o inverno. Era Julho, era domingo de manhã, e por causa disso o elétrico em vez dos costumeiros três minutos e meio demorou uns catorze minutos a chegar. Chovia nos dedos dos meus pés.

O elétrico chegou com o desabar de algum resto de boa disposição matinal, era uma viagem de mais ou menos dez minutos, mas o suficiente para por em risco o comboio que devia apanhar. O motorista ao contrário de mim sorriu, não era para menos, a chuva a cair-me em cima, os chinelos nos dedos, empacotada até às orelhas, a imagem devia ser engraçada. Como viu a minha pouca habilidade para conseguir gerir a bagagem para dentro do veículo, saiu ele mesmo e colocou-a lá dentro. Riu-se e comentou, Strano piovere questa matina. Eu já não ouvi mais nada. Desisti de olhar o relógio. Respirei fundo. Respirei fundo muitas vezes. Não havia muito a fazer.

(continua)

terça-feira, 12 de março de 2013

Dia #01 - Sangrando palavras

Ruge nas Entranhas,
dói por não ser.
Esmaga-se antes que no papel aconteça.

Febril esta tinta que escorre, procurando conforto nas palavras,
escorregando-as de linha em linha,
de fado em dias.

O peito sangra, rasgando-se, no apunhalar do destino.
E desaconteço em cada palavra estéril,
morrer na frase que os olhos escrevem e do papel escapa.

Aconteço nesta mágoa da palavra relutante,
na memória que se desacende perante o branco e o nada.

STOP

Obrigatório ser.

Fazer deste porto abrigo para desabrigadas palavras,
errantes gigantes pepétuados no silêncio.

Acontecidas,
Amanhecidas,
rasgadas, recortadas, apunhaladas.
lambendo, apenas
feridas e embaraços.

E esperar que na explosão
dos carateres
se rompa o castigo.

Este, de ter palavras que saiem pelos olhos,
pelos dedos, pela pele,
pelos dias,
pesando no bolso tão cheio de nadas.
Ali, onde não se abrigam as memórias.

Prova final.
Prova capital.

Desfaleço, não me inscrevo.
Hei-de morar na palavra vazia
Hei-de esvaziar-me
de dia e de nada.

Tudo gravita.
Eu ensaio um bailado,
é verbal
redondo,
enfado.

Grito,
e subitamente
fico

Leve
e por momentos
as que me assombram
(palavras que não penso)
ficam por aqui.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Dia #0

Desafio.
Dia zero.

Um texto por dia. Uma reflexão um exercício.
30 dias.

Por mim.