quarta-feira, 20 de março de 2013

Dia #09 - da solidão

Passar-se-iam dez anos até sentir aquela mesma solidão, a do carro, afastando-se, e da cidade, a milhares de quilómetros dos meus, se tornar num ameaçador grito, repetindo, uma, duas, dez, centenas de vezes, agora estás só. Agora

e aqui. Estás só.

O telefone nesse dia tinha tomado a decisão, firmemente contra a minha vontade, de tocar repetidamente: urgências e futilidades, esvaziando-me de qualquer paisagem interior que quisesse contemplar. O almoço, de pé ao balcão, uma sandes de salmão com requeijão. Faço nota à menina que a serviu, que é uma sandes com rima. Ela acedeu, que sim, que rimava, mas que não se interessava por palavras, nem por rimas, nem por versos. Um dia vou para Paris. Sim? Perguntei, mas só com os olhos. A sandes enchia-me o chão e o céu da boca. Que ia ser porteira de um lindo arranha céus. Bebi dois golos de sumo de laranja, para desentalar a sandes e o que me parecia ser um sonho sem asas. Eu não perguntei, mas ela continuava. Que seria provisório. O meu telefone tocou. Decido não interromper o monólogo e a sandes. Fiz-lhe um gesto, um sorriso e pedi-lhe por favor, que continuasse. Nas folgas cantaria à porta do metro, e seria convidada para um grande musical parisiense. Alargou o decote da blusa. Eu olhei o relógio. Estava atrasada, pelo menos dez minutos. Se pudesse, gostaria de tomar um café. Engoli o café, o telefone voltou a tocar.

Não atende? Sorri, denunciando o cansaço, mais tarde retribuiria a chamada, sabe como é? Ela, no que me pareceu um ato de boa fé e de ingenuidade, disse que não, que não sabia. Viajo muito, disse-lhe ainda, talvez nos encontremos, na próxima, em Paris. Ela sorriu. Eu não. O telefone tocava.

Saí do bar. Chovia. Como não tinha guarda-chuva, e porque não me apetecia voltar à futura porteira parisiense, abriguei-me na entrada de um prédio. Um velho pediu-me licença, colocou-se ao meu lado. Esperamos. Perguntou-me se estava bem. Olhei-o demoradamente. Conhecer-me-ia? Olhei-o de novo. Que sim, que estava, apenas estava atrasada. Atrasada para quê? Não cheguei a responder. O telefone tocou de novo. Segurei na mala do portátil com a mesma mão com que segurava a carteira, e para a mesma mão passei o casaco que não tinha vestido.

Procurei o telefone. Atendi. Silêncio. Tinha tirado os óculos, porque chovia, e porque estavam molhados, e não conseguia ler quem me ligava. O silêncio rompeu-se, do outro lado as palavras, tentando ser serenas, transformaram-se, para mim, num ameaçador grito, o mesmo grito que a cidade me fizera dez anos antes, repetindo, uma, duas, dez, centenas de vezes:

agora estás só, agora e aqui, estás

só.


Olho o velho, que fitava os sapatos. O senhor conhece-me?

Sem comentários:

Enviar um comentário

Se chegste até aqui, seria um gosto receber o teu comentário.