sábado, 16 de março de 2013

Dia #04 - Malpensa

A estação de Cadorna amanhecia lentamente, o domingo esticava-se pelos olhos e pelos modos de cada um dos trabalhadores. O balcão de atendimento era o meu oásis, atravessei o deserto sem olhar para nem mais um minuto. A camisa branca, demasiadamente branca, do rapaz atrás do balcão distraiu-me. Tirei o dinheiro do bolso, algumas notas, algumas moedas. Fiquei com dúvidas se estariam todas. Para Malpensa, já partiu? Que não tinha partido, e olhou para trás, num gesto que me pareceu demasiadamente lento e inexpressivo. O colega perguntava por um qualquer documento, devo ter suspirado. Dou-me conta que devo ter suspirado demasiadamente alto. O rapaz encara-me de novo com um olhar reprovador de suspiros a um domingo de manhã, pelas sete horas e vinte e nove minutos, olha a quantidade de moedas e notas que haveria de contar e começa a fazê-lo. Olho o comboio. Ele entende: Parte adesso, ma ormai non ci sono posti, il prossimo uscirá in trenta minuti.





Trinta





minutos





- Alle otto! - Eu tinha entendido, desde que Amália me morreu por escrito, que percebi o quanto aquela língua também era minha. Sim, ainda queria o bilhete. Chegaria com menos de quarenta minutos da hora do voo, mas a tempo da hora de embarque. Cruzo a sala de espera, arrastando a mala, o tripé da máquina fotográfica, o saco da mesma, a minha mochila castanha, e mais ou menos uma centena de 'ses' atropelando-me os passos. Se tivesse preparado os caixotes mais cedo. Se o carrinho das bagagens não se tivesse partido. Se não fosse domingo. Se.

Olho os chinelos nos dedos ainda molhados. Sento-me. Tiro duas bolachas da mochila. Como meia. Desabo. O senhor da cadeira em frente parece morto pelo domingo, não tem bagagem nem ar de quem vai viajar. Olho por cima do ombro a ver se é alguém atrás de mim que ele observa. Só há uma planta. Espero.

O comboio chegou um pouco antes da hora de partida, decido colocar as malas quase em frente à porta,  e planto a minha determinação ali mesmo. Não me sentei. Não espreitei pela janela. Fiquei. Ali seria a primeira a sair.

Chegada, ao aeroporto, com a sensação pueril de quem chega ao final da viajem, voei com os olhos, reli mil vezes os avisos, o número do voo, o portão de embarque. A luz cintilante e opressora, destino Oporto, embarque imediato, embarque imediato, embarque... uma massa disforme de gente, bagagens, cheiros e entraves separava-me do balcão do check in. Perguntei, uma vez. Duas vezes. Perguntei, mostrando o bilhete, qual seria o indicado. Qualquer um! O balcão indicado era:

qualquer um! Descubro que o check in à milanesa é indiferenciado. São oito horas e cinquenta e seis minutos, duas horas e um minuto depois de ter fechado a porta do quarto onde vivi por dez meses (dez meses depois da Amália me ter morrido pelos olhos),  num para sempre, num regresso a uma casa da qual não teria a certeza se poderia chamar novamente minha, descendo nove andares, a chuva insistentemente lembrando-me a inaptidão dos meus chinelos, o homem do elétrico carregando-me as malas, o rapaz da camisa demasiadamente branca apontando o comboio. E já não era uma massa de gente inoportuna entre mim e o check-in, era um borrão desfocado de cores. A senhora à minha frente viu o mesmo borrão que eu via, mas nos meus olhos. Pediu para ver também o meu bilhete. E como se vestisse de polícia sinaleiro abriu (não sei se moisés conseguiria fazê-lo tão depressa) um corredor de mim, até à senhora de dentes muito brancos e sorridentes do balcão. Que perde il volo, que perde il volo, gritava. Estranhei que não se ouvisse nenhuma marcha.

A menina atrás do balcão sorria e agora estendia-me, juntamente com os dentes brancos, os seus braços. Estendi-lhe o meu alívio, ela pediu-me o bilhete. Eram nove horas e três minutos, eu só conseguia pensar na bolacha e meia que tinha no bolso.


(continua)













1 comentário:

  1. Ai as viagens... Já perdi um avião de ligação, foi horrível, passei o dia todo no aeroporto...

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