domingo, 17 de março de 2013

Dia #06 - Pó de Talco

A porta da casa estava sempre destrancada, entravamos chamando. O contra-luz emoldurava a porta da  cozinha onde, não raras vezes, nos aparecia em silhueta hitchcockiana, exibindo o facalhão com que desventrava os animais para o almoço domingueiro. Nesse, o domingo do abraço, chamei e nenhuma silhueta se desenhou na porta. Cheirava a pó de talco, na sala, no corredor, pela cozinha, e nas escadas que subi, de acesso ao quarto. Tinha se deixado estar deitada, era manhã, era domingo, e não viria ninguém para almoçar. Bati. Com um cesto de flores que levava na mão, foi impossível não lembrar o capuchinho vermelho. Ela já se levantava, passava um pouco de talco no colo e apertava os últimos botões da camisa, tão branca, tão impecavelmente engomada.

Estendi-lhe as flores. Cheirou-as. Eu sorri. Para quê? Para te lembrares, e continuei, estão num vaso, sempre que as regares lembrar-te-ás que também eu cresço - como as flores. Que tinha muitas no jardim. Nenhuma que seja minha.

Descemos. De manhã fervia-se a água para o pó da cevada. Deixei-me a olhá-la, enquanto as mãos conheciam todos os lugares, ia passeando pela cozinha. A cevada misturou-se com o pó de talco, e por todo lado:

Ela. Serviu-me. Serviu-se. Bebemos a cevada com os sorrisos. Terminamos. Deixou-me lavar as chávenas, afastou-se e parecia procurar algo numa pequena caixa. Segurou-me com as mãos, as mesmas mãos que tantas vezes me tinham embalado. Como um segredo, colocou-me um pequeno embrulho nas minhas, tão pequeno que me fechou os dedos, todos, para que não o visse ou perdesse. Para que me voltes. Olhei-a nos olhos que não me viam, beijei-lhe as mãos, todas. Ela não disse mais nada. Lambeu-me os olhos com as suas mãos. E ficou muito parada, como se me visse apenas naquela vez, com os braços muito estendidos, já me esperando.

A rapariga do check-in impacientava-se, de braços estendidos e com a voz de um galináceo, fez-me um ralhete: La signora dovrebbe affrettarsi. As suas mãos perfumadas cheiravam-me a talco, flores e cevada.

(continua)

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